https://www.nitnota.com.br/
A multiplicidade de papéis que Maria Rezende desempenha está refletida em SIM, seu sexto livro de poemas, com lançamento marcado para 07 de novembro, na Casa Camolese, no Rio de Janeiro. Publicada no Brasil e em Portugal, coautora de um álbum bilíngue de canções lançado na Espanha, autora de espetáculos que rodaram o país, celebrante de quase cem casamentos e responsável pela montagem de grandes bilheterias do cinema brasileiro, a poesia de Maria mistura e extrapola esses universos. Seus versos criam imagens como cenas de filmes, revelam a intimidade do amor, do sexo, da solidão, iluminam a natureza crua do corpo com seus hormônios e vértebras, e têm em seu DNA o ritmo inconfundível da oralidade.
É que Maria aprendeu a dizer poemas antes mesmo de começar a escrever os seus. Disse versos de Ferreira Gullar com o poeta na platéia, poemas de Fernando Pessoa com Saramago encantado na primeira fila, e de tanto dizer grandes poemas viu nascerem os seus. Publicou Substantivo feminino de forma independente em 2003, com apenas 24 anos, com o misto de ousadia e insegurança da juventude. Sobre essa estréia, Manoel de Barros lhe enviou uma carta manuscrita em que dizia “Poesia é assunto de palavras que de ideias, e você sabe disso. Sendo assim, você é poeta.” A autoridade do mestre legitimou seu caminho e vinte anos depois ela se tornou uma multiartista que tem a poesia como centro e norte.
SIM reúne 46 poemas que passeiam por temas íntimos e universais, mesclando um olhar corajoso para dentro com um olhar inusitado para fora. Uma descoberta astronômica (“Um planeta leve flanando pelo espaço/ um planeta quase sem massa/ que não segue regras/ não anda em bandos/ não busca a luz de nenhuma estrela”), uma conversa entreouvida num voo internacional (“Nunca ser a mulher do avião / engolindo sua culpa com amendoins / mendigando afeto pelo telemóvel”) ou um encontro romântico cancelado em cima da hora (“Todo não poder / quase todo / revela um não querer o bastante / a ponto de fazer”) ganham contornos poéticos pelo olhar sensível da autora. Já no poema de abertura a poeta se apresenta como uma ‘emocionada’ (“Uns ganham medalhas / uns criam curas / uns sobem montanhas / uns multiplicam rendas / uns levantam construções / Eu sinto / muito / pós-graduada em sentir ”). Partindo daí, ela convida o leitor para seu universo, onde o corpo, com seus hormônios e fluidos, se coloca ele todo como argamassa para o fazer poético. O despojamento da métrica e das rimas contribui para uma leitura pontuada por surpresas, sem abrir mão da sofisticação.
Como aponta a poeta Valeska Torres na orelha do livro: “Maria escreve navegando entre o microscópico e o macroscópico galáxico. Se por vezes encontramos planetas e furacões, em outras encontramos o musgo e a mucosa. É como se o olhar da poeta acontecesse em todo o planeta e muito além, na Via Láctea. E mesmo assim é para o corpo que a poesia se volta.” A poeta se desnuda (“Com os cabelos cheirando a sexo / e o corpo limpíssimo de depois do gozo / me deito”) revelando medos, perdas (“Eu tive em mim dois umbigos e então / só um novamente / e ninguém nos braços”), prazeres e entregas.
“Em tempos tão duros como os que atravessamos”, diz Maria, “batizar um livro de SIM é uma certa ousadia de enxergar luz em meio às sombras e reafirmar a vida com seus sustos e maravilhas.” Curioso notar que a palavra que dá título ao livro aparece pouco nos versos, em que se destaca muitas vezes a palavra “não” (“Eu conheço o cheiro do fim / o cheiro do não”). Talvez porque como notou Valeska: “Depois do “não” é preciso começar de novo e de novo e de novo, fazendo o SIM se tornar um livro de inícios.” O título encontra espelho na arte da capa, um bordado da artista pernambucana Heloísa Marques criado especialmente para a obra e trabalhado pela designer Marianna Cersósimo. Esse sim luminoso dialoga com epígrafes espalhadas ao longo do livro, estampadas nas páginas pretas do esmerado projeto gráfico de Gabriela Rocha. São versos de Caetano Veloso, Ferreira Gullar e Clarice Lispector (“Tudo no mundo começou com um sim”).
A epígrafe final, de Caetano Veloso, “Não cabe em si/ de tanto sim” serve também como abertura da parte mais comovente de SIM. Nela, Maria mergulha na maternidade com toda a carga de desejo e toda a crueza dos fatos. Injeções, exames de nome difícil, as diferenças entre espécies (“Assim como eu /a galinha nasce com todos os seus óvulos / Diferente de mim / ela só será fértil por uns dez meses / e eu me queixando da minha janela de trinta e poucos anos”), a realidade de quem decide se tornar mãe solo por opção já depois dos 40 anos.
Em plena criação do livro, do qual é também editora, Maria descobriu estar vivendo o grande sim: está grávida de sua primeira filha. Criar arte, criar vida. Bordar fios dourados, fazer cílios, escolher fontes, formar órgãos. O que não é coincidência é que sejam ambos projetos independentes: um livro sem editora, uma filha sem pai. Frutos do desejo e da capacidade de realizar de uma artista que há vinte anos inventa seu caminho.
TRECHOS DE SIM
Videohisteroscopia
Um útero é do tamanho de um punho
disse a poeta
útero soco
bomba relógiopulsa rosa
pura mucosa cintilante
Um útero como farpa
membro fantasma
vibra
mudonunca se vê
nunca se pode esquecer
Útero lua rubra
deserto inexplorado
até chegarem as câmeras da tv
O brilho da carne
o gemido aqui forasalar fiorde catarata
natureza exuberante
explode
Um útero
salão de baile improvávelonde um dia
se calhar
pousará um cometasurgirá um planeta
Um útero é uma casa pronta pra morar
À capela
O amor em voz alta
não é um pedido
nem uma prisão
O amor em voz alta
é uma oferta
Infindo
Sabe o que é pra sempre?
tudo
Tudo que já aconteceu
pra sempre vai ter acontecido
as dores os porres os gozos belezas
Tudo é pra sempre embora mude
pra sempre ainda que depois diferente
O susto o tapa a gargalhada
o erro a escolha o beijo de línguaa curva da estrada
cada encruzilhada
o arrepio que nunca se repete
Eternos o silêncio e a palavra dita
o óvulo fecundado
o sangue mensal
o abraço inesperadoa mão dada
o abandono
o tropeço a topada o encaixe exato
o nó na garganta
Nada tem volta mesmo que não dure
Tudo é pra sempre
inclusive e muito especialmenteo que acaba de acabar
Transparência
O estrondo no escuro
a cicatriz no joelho
e as palavras se dissolvendo no percurso da língua
O assombro do encanto
o susto do encontro
a frase
sabia que ia te verpichada bem ao lado de
ouvi muito falar em você
Hieróglifos modernos
no mais alto do edifício mais altoque é o rosto de uma pessoa
Uma pessoa nua no meio da rua
sem ser sonho
é o que?
pessoa desarmadaapta pra tropeços
Não há maravilha sem carne
só o que pulsa se espatifa
é preciso estar vivo
pra brilhar e pra doer
Banho
Na impossibilidade de lavar a alma
os cabelos
Emocionada
Uns ganham medalhas
uns criam curas
uns sobem montanhasuns multiplicam rendas
uns levantam construções
Eu sinto
muito
pós-graduada em sentir
Sinto prazer e fecho os olhos em público
sinto medo e me recolho entre mantas
sinto fome e lambo os dedos
sinto dores sem disfarce e arranho a caracom afiadas unhas imaginárias
Eu sinto sem reservas
sentidora olímpica
sinto pele e pelos e gosto e texturae sinto temperaturas
sinto raiva e invento gritos
arrepios de beleza
sinto horror e me atropelo
alegria e remexo quadris
Eu sinto como uma criança
como uma desesperada
sinto sozinha
em duplaem bando
em casa
na calçada
de manhã
na madrugada
Sinto tudo e choro pelas ruas
colho pitangas
sessenta e quatro
daí disfarço a emoção e o furtomisturando o doce da chuva
ao sal dos olhos
Sentir
calcanhar de Aquilesestilingue de nervos
tropeço
gatilho
ponto macio
laço maravilha
inútil belo superpoder
https://www.legislaqui.com.br/seus-direitos
Descubra mais sobre Gabriela Nasser
Assine para receber nossas notícias mais recentes por e-mail.